Corriam os últimos meses do ano de 1656 e em Portugal
reinava D. João IV. Isto de referir que D. João reinava é apenas uma forma de
dizer, pois, em boa verdade, era a rainha D. Luísa, sua mulher, que, no
dia-a-dia e com mão de ferro, orientava os cordelinhos da governação, sempre
com o fito nos interesses maiores da família real e do reino.
E se não fosse D. Luísa de Gusmão, com a sua maneira
determinada e rápida de agir nos momentos críticos, talvez o nosso país fosse
hoje uma província da vizinha Espanha. Foi com as suas palavras “que mais valia
rainha um dia do que duquesa toda a vida” que conseguiu motivar o indeciso marido,
ainda duque de Bragança, a aceitar o trono do reino português que lhe era
proposto pelos conjurados. Estes mesmos que, uns dias mais tarde, no primeiro
dia de Dezembro de 1640 haveriam de tomar de assalto o Paço da Ribeira e de
restaurar a independência de Portugal, pondo fim à ocupação de Castela que já durava
há cerca de 60 anos.
Mas, voltando ao ano em que começa este relato, o rei D.
João andava há uns tempos bastante debilitado pela gota e por dores provocadas
por pedras que os rins iam acumulando. A pedido dos médicos da corte, o
boticário do paço real afadigava-se há meses em descobrir alguma mezinha que curasse
o soberano das suas maleitas. Com esse fim, lá ia consultando tudo o que era
conhecido sob a forma escrita acerca das plantas medicinais e das suas
propriedades, desde livros e manuais antigos em latim até a um compêndio em
chinês que tinha mandado traduzir de propósito. E, apesar de todas as suas
tentativas, ainda não o tinha conseguido.
Até que uma manhã, depois de muitas horas de sono
perdidas, o boticário descobriu um manuscrito já muito amarelecido pelo tempo,
que não pelo uso, onde encontrou a referência a duas substâncias com
designações esquisitas, que, tendo em conta as suas características e se misturadas
nas proporções adequadas, talvez resultassem no remédio de que o rei andava
necessitado.
E se bem o descobriu e leu, melhor fez em guardar o tal
manuscrito em sítio seguro de olhares alheios e, apenas de memória, passar para
o livro de registo das patentes a seguinte fórmula: valsartan/hidroclorotiazida
160 mg/12,5 mg.
Com letras bem legíveis, o que, em tratando-se de médicos
ou de farmacêuticos, era à época, como ainda é hoje, muito difícil de
encontrar, o boticário real copiou a primeira parte da fórmula para um naco de
papel e a restante, a das quantidades, para outro. De seguida, chamou dois jovens
aprendizes e, a cada um, entregou um dos papeluchos, com a incumbência de, por
caminhos diferentes, se dirigirem à loja de um mercador de plantas e sementes,
situada numa ruela junto do rio.
A preocupação do boticário, ao indicar aos moços
itinerários distintos para alcançarem o mesmo destino, tinha uma razão de ser.
É que, naquele tempo, pululavam pela cidade de Lisboa cidadãos estrangeiros,
nomeadamente ingleses, espanhóis, franceses e holandeses, que se dedicavam a diversas
actividades, entre as quais a espionagem industrial que se prendia com a
feitura de remédios e afins. E isto acontecia porque todas as semanas aportavam
ao Tejo, vindas do Oriente, muitas embarcações carregadas de variadíssimas plantas
e especiarias, muitas delas desconhecidas dos europeus.
E não é que o receio do boticário era fundado? É que um
dos aprendizes, antes de chegar ao seu destino, foi assaltado numa quelha por
dois espanhóis e logo morto à punhalada, para evitar que, mais tarde, viesse a
reconhecer os assaltantes e os mandasse prender. Diga-se que, naquela época, a
vida humana tinha muito pouco valor e amiúde, por dá cá aquela palha, os
vizinhos e os forasteiros envolviam-se em rixas e matavam-se com tiros de
arcabuz e golpes de espada ou de punhal. Diga-se também, em abono da verdade,
que hoje em dia é quase a mesma coisa quanto ao valor dado à vida, sendo que agora
os intervenientes e os meios são diferentes: de um lado da barricada temos os
governantes e do outro a maioria dos portugueses, e no que respeita às armas,
só utilizadas por aqueles, temos desde impostos exagerados a taxas imoderadoras
sobre tudo e mais alguma coisa, desde sobretaxas estapafúrdias a contribuições
especiais de solidariedade para com os poderosos e os ricaços, armas essas que
não matam no imediato, mas que vão dizimar o povo português ao longo das
próximas décadas. De volta ao infeliz e morto moço, era o que levava no bolso
da jaqueta a parte da fórmula com os nomes das substâncias. Os assaltantes eram
espiões ao serviço da coroa de Castela e tinham como missão descobrir alguma
coisa a respeito da gravidade do estado de saúde do rei português. Tudo isto
com vista ao planeamento de uma ofensiva, a partir de Badajoz, contra o castelo
fronteiriço de Elvas, numa altura em que as forças armadas portuguesas
estivessem com a moral em baixo, preocupadas com a saúde do seu rei.
Os dois castelhanos não eram nada bons em língua
portuguesa e muito menos eram peritos em fármacos. Refira-se que estava longe
no tempo a profissionalização da espionagem, o que só aconteceu com o
aparecimento das organizações especializadas CIA, NSA, MI6, KGB e Mossad, ou a
saga de filmes do James Bond. Mas, como espiões que eram, apesar de amadores, ao
que estava escrito no papel roubado atribuíram o sentido de um texto codificado.
Depois de várias horas dedicadas a conjecturas e decifrações, acabaram por
chegar a esta frase descodificada: “De valsar tanto, o hidro passou a cloro.
Tia Zida”. Como desconheciam por completo o que era o hidro ou o cloro e, por
outro lado, também nunca tinham ouvido falar na tal tia Zida, ambos entenderam
que deveria tratar-se de algum assunto particular de um familiar do patrão do
rapaz assaltado. E se assim o entenderam, melhor decidiram o que fazer, ou
seja, nada de especial relevo: rasgaram o papelucho em mil bocados e
deitaram-nos ao rio.
O boticário acabou por saber que o aprendiz não tinha chegado
à loja do tal comerciante através do outro, que regressou ao laboratório muitas
horas depois e de mãos vazias. Mas, antes de fazer nova tentativa para obter as
tais substâncias, aconteceu o que na corte portuguesa já toda a gente temia.
Com a gota a atormentá-lo cada vez mais e as pedras a darem-lhe cabo dos rins,
D. João IV de Portugal não teve forças para penar mais e acabou por falecer
antes de terminar aquele ano.
E com aquele triste acontecimento, o farmacêutico da corte
deixou de ter necessidade de encontrar a mezinha para a cura dos males do seu
querido rei e perdeu também todo o interesse para continuar o seu trabalho, a tal
mezinha à qual tinha dedicado, sem sucesso, tantos meses da sua vida. Mas, ao
menos, ficava-lhe o pequeno consolo de ter registado a fórmula no livro das
patentes do reino, porque, quem sabe, talvez um dia os vindouros pudessem
aproveitar aquela fórmula para algum remédio de jeito.
Notas:
1.- Quase 350 anos depois destes factos, a dita fórmula
chegou ao conhecimento de uma empresa farmacêutica multinacional que, após
alguns testes laboratoriais, produziu um fármaco com as tais substâncias e nas
doses indicadas. O medicamento não cura a doença da gota nem elimina as pedras
nos rins, como pretendia o boticário. Mas, como já aconteceu noutras alturas
com grandes descobertas científicas, serve para outro fim, ou seja, ajuda a
controlar a tensão arterial elevada [hipertensão].
2.- A ideia deste texto surgiu-me há umas semanas, quando
andava a ler o romance histórico, escrito por Isabel Stilwell, acerca de
Catarina de Bragança, a filha de D. João IV que se tornou rainha de Inglaterra.
Quase na mesma altura foi-me receitado um fármaco para controlar a tensão
arterial, cujas substâncias activas são as referidas no texto. Da conjugação
destes dois factos, leitura do romance e toma do medicamento, resultaram as
linhas acima, que me deram bastante gozo escrever.
Fevereiro/2014
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