sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A fórmula roubada


 

Corriam os últimos meses do ano de 1656 e em Portugal reinava D. João IV. Isto de referir que D. João reinava é apenas uma forma de dizer, pois, em boa verdade, era a rainha D. Luísa, sua mulher, que, no dia-a-dia e com mão de ferro, orientava os cordelinhos da governação, sempre com o fito nos interesses maiores da família real e do reino.

E se não fosse D. Luísa de Gusmão, com a sua maneira determinada e rápida de agir nos momentos críticos, talvez o nosso país fosse hoje uma província da vizinha Espanha. Foi com as suas palavras “que mais valia rainha um dia do que duquesa toda a vida” que conseguiu motivar o indeciso marido, ainda duque de Bragança, a aceitar o trono do reino português que lhe era proposto pelos conjurados. Estes mesmos que, uns dias mais tarde, no primeiro dia de Dezembro de 1640 haveriam de tomar de assalto o Paço da Ribeira e de restaurar a independência de Portugal, pondo fim à ocupação de Castela que já durava há cerca de 60 anos.

Mas, voltando ao ano em que começa este relato, o rei D. João andava há uns tempos bastante debilitado pela gota e por dores provocadas por pedras que os rins iam acumulando. A pedido dos médicos da corte, o boticário do paço real afadigava-se há meses em descobrir alguma mezinha que curasse o soberano das suas maleitas. Com esse fim, lá ia consultando tudo o que era conhecido sob a forma escrita acerca das plantas medicinais e das suas propriedades, desde livros e manuais antigos em latim até a um compêndio em chinês que tinha mandado traduzir de propósito. E, apesar de todas as suas tentativas, ainda não o tinha conseguido.

Até que uma manhã, depois de muitas horas de sono perdidas, o boticário descobriu um manuscrito já muito amarelecido pelo tempo, que não pelo uso, onde encontrou a referência a duas substâncias com designações esquisitas, que, tendo em conta as suas características e se misturadas nas proporções adequadas, talvez resultassem no remédio de que o rei andava necessitado.

E se bem o descobriu e leu, melhor fez em guardar o tal manuscrito em sítio seguro de olhares alheios e, apenas de memória, passar para o livro de registo das patentes a seguinte fórmula: valsartan/hidroclorotiazida 160 mg/12,5 mg.

Com letras bem legíveis, o que, em tratando-se de médicos ou de farmacêuticos, era à época, como ainda é hoje, muito difícil de encontrar, o boticário real copiou a primeira parte da fórmula para um naco de papel e a restante, a das quantidades, para outro. De seguida, chamou dois jovens aprendizes e, a cada um, entregou um dos papeluchos, com a incumbência de, por caminhos diferentes, se dirigirem à loja de um mercador de plantas e sementes, situada numa ruela junto do rio.

A preocupação do boticário, ao indicar aos moços itinerários distintos para alcançarem o mesmo destino, tinha uma razão de ser. É que, naquele tempo, pululavam pela cidade de Lisboa cidadãos estrangeiros, nomeadamente ingleses, espanhóis, franceses e holandeses, que se dedicavam a diversas actividades, entre as quais a espionagem industrial que se prendia com a feitura de remédios e afins. E isto acontecia porque todas as semanas aportavam ao Tejo, vindas do Oriente, muitas embarcações carregadas de variadíssimas plantas e especiarias, muitas delas desconhecidas dos europeus.

E não é que o receio do boticário era fundado? É que um dos aprendizes, antes de chegar ao seu destino, foi assaltado numa quelha por dois espanhóis e logo morto à punhalada, para evitar que, mais tarde, viesse a reconhecer os assaltantes e os mandasse prender. Diga-se que, naquela época, a vida humana tinha muito pouco valor e amiúde, por dá cá aquela palha, os vizinhos e os forasteiros envolviam-se em rixas e matavam-se com tiros de arcabuz e golpes de espada ou de punhal. Diga-se também, em abono da verdade, que hoje em dia é quase a mesma coisa quanto ao valor dado à vida, sendo que agora os intervenientes e os meios são diferentes: de um lado da barricada temos os governantes e do outro a maioria dos portugueses, e no que respeita às armas, só utilizadas por aqueles, temos desde impostos exagerados a taxas imoderadoras sobre tudo e mais alguma coisa, desde sobretaxas estapafúrdias a contribuições especiais de solidariedade para com os poderosos e os ricaços, armas essas que não matam no imediato, mas que vão dizimar o povo português ao longo das próximas décadas. De volta ao infeliz e morto moço, era o que levava no bolso da jaqueta a parte da fórmula com os nomes das substâncias. Os assaltantes eram espiões ao serviço da coroa de Castela e tinham como missão descobrir alguma coisa a respeito da gravidade do estado de saúde do rei português. Tudo isto com vista ao planeamento de uma ofensiva, a partir de Badajoz, contra o castelo fronteiriço de Elvas, numa altura em que as forças armadas portuguesas estivessem com a moral em baixo, preocupadas com a saúde do seu rei.

Os dois castelhanos não eram nada bons em língua portuguesa e muito menos eram peritos em fármacos. Refira-se que estava longe no tempo a profissionalização da espionagem, o que só aconteceu com o aparecimento das organizações especializadas CIA, NSA, MI6, KGB e Mossad, ou a saga de filmes do James Bond. Mas, como espiões que eram, apesar de amadores, ao que estava escrito no papel roubado atribuíram o sentido de um texto codificado. Depois de várias horas dedicadas a conjecturas e decifrações, acabaram por chegar a esta frase descodificada: “De valsar tanto, o hidro passou a cloro. Tia Zida”. Como desconheciam por completo o que era o hidro ou o cloro e, por outro lado, também nunca tinham ouvido falar na tal tia Zida, ambos entenderam que deveria tratar-se de algum assunto particular de um familiar do patrão do rapaz assaltado. E se assim o entenderam, melhor decidiram o que fazer, ou seja, nada de especial relevo: rasgaram o papelucho em mil bocados e deitaram-nos ao rio.

O boticário acabou por saber que o aprendiz não tinha chegado à loja do tal comerciante através do outro, que regressou ao laboratório muitas horas depois e de mãos vazias. Mas, antes de fazer nova tentativa para obter as tais substâncias, aconteceu o que na corte portuguesa já toda a gente temia. Com a gota a atormentá-lo cada vez mais e as pedras a darem-lhe cabo dos rins, D. João IV de Portugal não teve forças para penar mais e acabou por falecer antes de terminar aquele ano.

E com aquele triste acontecimento, o farmacêutico da corte deixou de ter necessidade de encontrar a mezinha para a cura dos males do seu querido rei e perdeu também todo o interesse para continuar o seu trabalho, a tal mezinha à qual tinha dedicado, sem sucesso, tantos meses da sua vida. Mas, ao menos, ficava-lhe o pequeno consolo de ter registado a fórmula no livro das patentes do reino, porque, quem sabe, talvez um dia os vindouros pudessem aproveitar aquela fórmula para algum remédio de jeito.

 

 

Notas:

1.- Quase 350 anos depois destes factos, a dita fórmula chegou ao conhecimento de uma empresa farmacêutica multinacional que, após alguns testes laboratoriais, produziu um fármaco com as tais substâncias e nas doses indicadas. O medicamento não cura a doença da gota nem elimina as pedras nos rins, como pretendia o boticário. Mas, como já aconteceu noutras alturas com grandes descobertas científicas, serve para outro fim, ou seja, ajuda a controlar a tensão arterial elevada [hipertensão].

2.- A ideia deste texto surgiu-me há umas semanas, quando andava a ler o romance histórico, escrito por Isabel Stilwell, acerca de Catarina de Bragança, a filha de D. João IV que se tornou rainha de Inglaterra. Quase na mesma altura foi-me receitado um fármaco para controlar a tensão arterial, cujas substâncias activas são as referidas no texto. Da conjugação destes dois factos, leitura do romance e toma do medicamento, resultaram as linhas acima, que me deram bastante gozo escrever.

 

 

Fevereiro/2014

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